sexta-feira, 25 de junho de 2010

Veja

No mínimo é algo para se pensar...

Vista cansada

Por Otto Lara Resende

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isso, um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito, pode ser que ninguém desse por sua ausêcia. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos. Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de tão visto ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher. Isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia opacos.

É por isso aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

2 comentários:

  1. Já tinha lido algo do Otto... mas agora ele conseguiu, viu.
    Ótima escolha do post.
    Leia também "Palitos", dele.

    Beijos.

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  2. Fala Guilherme!
    Só hj vi o seu comentário no meu blog (www.cotidianocronico.blogger.com.br). Legal que gostou! Volte sempre que quiser...
    Esse texto do Otto é clássico! E dos melhores dele.
    Um abraço!

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